— Cristine Takuá
Anai Vera, Célia Barros e Gabriela Leirias conversam com Cristine Takuá, escritora, artesã, filósofa, ativista, professora e curadora de exposições. O diálogo se tece entre os fios de sua experiência pessoal no mundo artístico e sua percepção sobre arte e mulheres indígenas.
Cris, como você define a sua atuação?
Sou educadora, mãe, aprendiz de parteira, pensadora, coordenadora da ação Escolas Vivas, junto ao Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida. Atuo como diretora do Instituto Maracá, que está fazendo parte da gestão compartilhada do Museu das Culturas Indígenas em São Pauloe venho fazendo algumas curadorias de arte em exposições. Estudei Filosofia na Unesp 20 anos atrás e venho numa longa caminhada de reflexões sobre os desafios de alcançar o Bem Viver, também sobre as contradições desta humanidade que vive mergulhada numa monocultura mental e nega as outras formas de pensar, as outras epistemologias.
Gostaríamos que nos contasse como foi a sua trajetória artística, com quem você aprendeu, em que contextos aconteceram essas trocas de saberes e de que forma esse conhecimento se articula com as demais profissões e seus vínculos mais recentes com a arte indígena e a atuação como curadora de exposições.
Minha trajetória enquanto artesã se relaciona com o pensamento artístico. Desde criança, tive muito gosto por cores, elas sempre me encantaram muito, me arriscava fazendo coisas para vestir, juntando sementinhas para fazer uma pulseira, um colar. Isso sempre me animou muito. Na verdade, não teve uma pessoa que me ensinou a fazer isso, foi na observação, na curiosidade.
Fui fazendo, até que, em determinado momento, me encantou muito a tecelagem. Então, comecei a esticar fios em pedaços de madeira, fazendo armações de madeira, até que meu pai me fez um tearzinho. Tecer as cores abriu o universo para mim e foi também uma forma de sustentabilidade enquanto estudava Filosofia na faculdade. Tenho um olhar estético ao observar o mundo e percebi que é um pouco monocromático, assim como as pessoas. Sempre tive uma coisa de cores e de formas, de querer algo diferente para mim.
Fui desenvolvendo um pensamento sobre educação relacionado à arte, que é a minha forma de ver o mundo, de como as coisas se encontram, se conectam.
Eu vim morar na aldeia guarani, pois me casei com Carlos Papá 1. Durante minha infância, tive um vazio muito grande por não ter conhecido as minhas duas avós. Na comunidade, a minha sogra, Doralice Kunha Tatá 2, foi uma grande mestra para mim. Eu ficava observando ela e suas artes. Isso me inspirou bastante para continuar fazendo e buscando elementos da natureza para produzir esses conhecimentos artísticos. Começaram a surgir convites para falar sobre arte indígena, a partir de um pensamento mais estético e filosófico. E, depois, eu mesma comecei a ser curadora e a organizar exposições, principalmente com a abertura do Museu das Culturas Indígenas 3. Esse é um caminho que está se abrindo lentamente.
Tenho mergulhado nesse olhar cada vez mais, no pensar nas artes e nas suas mais diversas formas. Inclusive, na questão do parto, para dar um exemplo, lembro que uma vez vi a minha sogra colhendo takua 4, um pedacinho de taquara, para fazer uma faquinha que serve para cortar o umbigo do recém-nascido. Aquilo para mim soou tão belamente. Entender que o parto tem uma confecção que lhe antecede, que é essa delicadeza de se produzir tudo o que está em volta para que essa criança chegue ao mundo.
Então, eu relaciono a arte de “partejar”, essa arte de vir ao mundo, como uma das mais belas artes, na qual tudo se origina. Venho ao longo de alguns anos refletindo sobre arte, educação e vida e quanto tudo está muito relacionado.
Entendemos que no pensamento indígena é difícil separar o fazer artístico das demais atividades. Como você percebe essa relação hoje, pensando nas artistas mais jovens? Você considera que essa prática está se transformando? Aproveitamos para pedir que nos fale de que modo a palavra “arte” faz sentido nos contextos em que você vive e circula.
Eu vejo que o pensamento da vida tem relação com tudo que nos rodeia, é arte pura, é um fazer artístico constante. Quando comecei a dar aula, fiquei muito impressionada com o currículo quadrado das escolas, que impulsiona a alfabetização através de letras e números e afasta o processo criativo e artístico das crianças. Essa é a grande crítica que faço às escolas de modo geral. Se a gente parar para pensar e observar, o fazer artístico está nas mais diversas e sensíveis ações do dia a dia dos povos indígenas do mundo todo.
Hoje em dia, para as artistas mais jovens, diante deste mundo da tecnologia e da informação, há muito intercâmbio. É uma relação de conhecer o universo do outro, através das redes sociais, de filmes, então há certa inspiração que proporciona conhecer o mundo do outro, mas também fortalecer o seu. Eu vejo que essa transformação se dá naturalmente, com o transformar do tempo e das coisas todas. Mas também existe um aprimoramento, uma dedicação dos jovens artistas de buscarem encontrar qual é o seu dom artístico, qual é a sua forma de trazer a mensagem para o mundo através da arte. Nas aldeias, a palavra arte, de modo geral, não é falada, tanto é que eu vejo que muita gente chama de artesanato alguns fazeres artísticos.
Para os indígenas, as palavras artesanato e arte não são empregadas no sentido que o mundo ocidental conhece, mas se fala como sendo esse sensível fazer, esse sensível saber das coisas que se conecta com tudo que nos rodeia, com a floresta, com todos os elementos sagrados. É de onde brota a arte. Existe esse conhecimento ancestral que habita lá no profundo da memória, que é repassado dos avozinhos para os pais, dos pais para os filhos, e isso vai se ampliando e se tornando cada vez mais potente.
A arte é uma memória profunda que está presente e viva no meio da gente. Isso é muito lindo, muito verdadeiro.
Você pode falar um pouco sobre o Bem Viver, Teko Porã? Como essa relação está sendo afetada pelos impactos da destruição das florestas?
Algumas pessoas falam que o Teko Porã é o Bem Viver. Mas eu gosto de dizer que o Teko Porã 5 é a boa e bela forma de você ser e estar no seu tekoa 6, no seu território. E para acessá-la, há um processo delicado, envolvendo uma teia de relações, que é a vida da cultura em relação com a floresta, com tudo: com os espíritos, com seres visíveis e invisíveis. Então, para mim, o Teko Porã é a base de tudo que estrutura nossa vida; não há educação se não houver Teko Porã, se não houver esse impulso de acessar o Bem Viver.
Infelizmente, hoje em dia, todas essas violências, esses machucados, essas feridas na terra, essas pegadas pesadas que os humanos vêm fazendo ao longo de muito tempo, têm afetado essa relação. Existem lugares, territórios onde a floresta desapareceu, onde a floresta foi retirada. Com essa violência do saqueamento, da captura desses elementos sagrados, muitos dos saberes ancestrais, que permitem que os fazeres se materializem em formas artísticas, ficam difíceis de ser encontrados.
Diversos povos têm hoje uma reflexão sobre a importância da floresta viva para a manutenção e para a continuidade do processo de transmissão de conhecimentos, porque não tem como você praticar essa transmissão se não tiver a floresta. Eu chamo isso de Teko Vai 7, que é a forma má, feia, a forma ruim de você ser e estar no território, que é essa maneira na qual o mundo do capitalismo transformou tudo que vive em mercadoria. E nesse saqueamento, nessa captura em que tudo vira capital, vemos também todo um conhecimento que deixa de ser praticado. Por isso, eu tenho pensado muito fortemente sobre como a gente mantém vivas essas memórias, como conseguir conectar esses espíritos invisíveis que habitam na floresta, para que esses saberes não deixem de ser praticados.
Hoje os museus vêm se abrindo para práticas decoloniais, possibilitando a presença de artistas, artesãos, curadores e pesquisadores indígenas. Como você percebe esse novo posicionamento dos espaços culturais? De que forma a experiência museal e da arte contemporânea dialoga com os contextos e as dinâmicas culturais das aldeias? Você poderia também contar sobre os desafios nessa construção de um museu de gestão compartilhada como o Museu das Culturas Indígenas?
Muitos espaços culturais, como museus e instituições de cultura, vêm buscando trazer práticas de decolonizar, de transformar esse diálogo, através da presença de artistas indígenas, de curadores, pensadores, pessoas que podem produzir arte do seu ponto de vista.
Eu vejo que esse espaço é muito importante e tem marcado significativamente uma transformação no olhar, na forma de se perceber a arte: todo o movimento da Arte Indígena Contemporânea que o grande e especial Jaider Esbell 8 abriu, esse roçado colorido e fértil que trouxe também muitos artistas jovens e coletivos, para impulsionar e enxergar essa arte de uma forma respeitosa, com o seu valor.
Dentro das comunidades indígenas, há coletivos em que esse diálogo é mais forte, mais avivado. Em outros territórios não há necessariamente um diálogo tão próximo com esse movimento que circula nas cidades. Mas isso está se fortalecendo cada vez mais. Em São Paulo, a gente começou a criação de um museu, onde a gente pudesse trazer a presença indígena no estado de São Paulo e ter uma visão maior dos povos indígenas no Brasil. Isso veio com a criação da Tava 9, palavra com que foi nomeado o Museu das Culturas Indígenas, pela inspiração de Carlos Papá. E “Tava” é a “Casa da Transformação”, é a grande escola, é a maloca do saber onde tudo se transforma, onde tudo se encontra.
Existe a questão do respeito pela mudança de paradigma dessa monocultura mental daqueles que não percebem a multiversidade que habita no seu próprio terreiro. Então, a “Tava” veio como uma provocação em São Paulo para trazer essa presença indígena em meio da Nhe'ẽry, em meio da Mata Atlântica, com povos de muita resistência. É uma resistência espiritual que perpassa muita história, muitas camadas de violência, mas também muitas camadas de beleza.
O grande desafio é o diálogo na construção desse Museu, nessa gestão compartilhada. Eu participo enquanto diretora do Instituto Maracá, mas também estão a ACAM Portinari, a entidade gestora do Museu, e o Conselho Aty Mirim, que é o conselho indígena composto diferentes povos do estado de São Paulo. Estamos nesse diálogo muito delicado e sensível, para tentar reeducar a nossa sociedade, para tentar trazer um pouco dessa presença viva e tirar essa visão estereotipada que muitos brasileiros têm, por exemplo, de que o indígena está só lá na Amazônia, ou de que indígena é de certa forma ou de outra. Mas queremos trazer uma visão de pensamento de como é construir um Museu Vivo.
O grande diferencial é ter um Conselho Indígena, mas também contar com um grupo do educativo composto só por indígenas, que chamamos de “Mestres do saber”. O público que chega ao museu é recebido por “Mestres do saber” de diversos povos, esse é um modelo inovador.
Mas, há muitos anos, já vínhamos dialogando com a Rede Indígena de Memória e Museologia Social no Nordeste, que conecta alguns museus comunitários, e traz sua fala e sua história com uma força e uma resistência muito bela, para afirmar esse território como território indígena.
Eu vejo que a museologia, de certa forma, vem trazendo essa relação com os territórios, com o território da Caatinga, o território do Cerrado, o território da Nhe'ẽry – a Mata Atlântica.
E todos esses territórios são territórios de pensamento, são territórios de resistência. Esse movimento dos museus vem abrindo um processo muito profundo de transformação e de reeducação da sociedade.
Conte-nos um pouco sobre a sua experiência como curadora. Onde já atuou, com quem, seja sozinha, seja com outros aliados? Quais são os principais desafios?
A minha atuação como curadora é recente. Venho acompanhando o trabalho de muitos amigos artistas curadores. Um marco muito importante para mim foi quando o finado Jaider Esbell, Sueli Maxakali e outros artistas indígenas participaram da 34a Bienal de São Paulo, em 2021.
Naquele momento, fui convidada por Jaider para fazer uma formação para o educativo do MAM, que, por sua vez, estava recebendo uma exposição paralela, no mesmo momento da Bienal, que foi a exposição Moquém_Surarî 10. Aquela formação foi muito importante para mim, pois era acompanhar toda aquela diversidade de pessoas que iriam receber o público para falar de uma exposição indígena muito potente.
Aquele momento mexeu fortemente comigo, pois me trouxe a reflexão e o observar a profundeza das mensagens, dessas outras filosofias, dessas concepções de coletivos que se ativam, de redes e teias que vão se tecendo juntas. Foi um momento muito poderoso.
Embora, durante esse processo, também tenha tido o encantamento de Jaider, que foi um luto muito sofrido, no qual precisamos parar tudo para refletir sobre a vida, sobre a morte, sobre a transformação, sobre as metamorfoses e sobre como tudo transborda o pensamento. Em 2022, veio o Museu das Culturas Indígenas. Em 2023, fiz no museu a curadoria da exposição Nhe'ẽry, sobre a Mata Atlântica, junto com Sandra Benites 11, Carlos Papá e Sonia Ara Mirim 12. Foi um momento muito importante e especial para mim. No final de 2023, fui curadora da exposição Viva Viva Escola Viva, que trouxe arte de vários coletivos de territórios diferentes, da Amazônia e daqui da Nhe'ẽry, da Mata Atlântica.
Eu costumo dizer que foi uma exposição de pensamento. A exposição aconteceu no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, e reuniu os povos Huni Kuin, Maxakali, Tukano, Baniwa, Dessana, Tuyuca e Guarani. Foi um momento muito rico e importante, em que todas essas artes e todos esses pensamentos se juntaram com uma grande potência. Neste momento, estou organizando uma exposição junto com a Anita Ekman 13, que vai abrir no IAIA 14, um Museu de Arte Indígena em Santa Fé, no estado do Novo México, nos Estados Unidos.
São esses trabalhos e reflexões que venho fazendo ao longo destes últimos anos. É uma caminhada que ainda está se abrindo, em que busco refletir bastante e com muito cuidado, porque, na verdade, nunca tive pretensão de ser curadora de arte. Eu me sinto mais como uma pensadora de todo esse processo, também como uma educadora, também como mãe e também como semeadora de vários espaços.
As curadorias têm me animado bastante, e esse processo de um conhecimento que conecta o que está lá dentro do nosso interior está se abrindo cada vez mais.
Como foi o processo de elaboração da exposição Nhe'ẽry – onde os espíritos se banham, no Museu das Culturas indígenas? E o da exposição Escolas Vivas no Rio de Janeiro? Que outras exposições tem planejadas para este ano?
Para elaborar a exposição Nhe'ẽry – onde os espíritos se banham, houve um processo coletivo. O título foi dado por Carlos Papá, e a fomos desenvolvendo junto com Sandra Benites e Sonia Ara Mirim. Foi um desafio, porque a Mata Atlântica está presente em muitos estados no Brasil, mas fizemos um recorte curatorial pensando em alguns povos de São Paulo e de Minas Gerais. Dentro desse percurso, pensamos em uma mensagem de resistência dos povos que habitam essa Nhe'ẽry com o objetivo de trazer a visão dos próprios espíritos da água, da floresta, das plantinhas. Foi um momento muito profundo de trazer as vozes desses seres que quase nunca são chamados e convocados para falar para o público, mas que estão ali sempre pulsando pela sua própria sobrevivência.
A Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do planeta, tem uma riqueza e uma biodiversidade muito potentes. Essa exposição foi justamente para trazer para o mundo e para a sociedade o respeito a esse território sagrado.
A exposição Viva Viva Escola Viva, no Rio de Janeiro, foi também um processo de construção muito focado nesse trabalho de fortalecimento das trocas e da transmissão de saberes entre esses povos que estão conectados. Foi uma caminhada muito bonita nesses territórios, através de oficinas e de diálogos. Os trabalhos foram elaborados dentro dessas oficinas de arte, em diálogo com Anna Dantes 15, que foi essencial na construção dessa exposição. Anna apoiou e produziu tudo isso, junto com a equipe do Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida.
Essa exposição trouxe um brilho, uma força e uma potência muito grandes, para dar importância às memórias ancestrais. Eu acredito que a memória nunca morre, que a memória nunca se apaga, mas que ela adormece. A partir do momento em que a gente se dá as mãos e tece juntos uma trajetória de um pensamento, vamos proporcionando o “acordamento”, o despertar das memórias.
Há uma nova exposição que estou organizando com a Anita Ekman, que vai acontecer no Museu de Arte Indígena de Santa Fé, no Novo México, nos Estados Unidos, que vem de trazer uma reflexão profunda de artistas mulheres que vêm produzindo artes, através dos seus coletivos e de suas existências nos seus territórios.
É uma exposição que traz como impulso o útero da terra e as cosmovisões das florestas tropicais.
Por isso, tem sua força centrada na arte de mulheres indígenas, que tem lá no profundo do seu útero essa potência que motiva, que ativa, que faz nascer e transformar o mundo.
Então, é uma exposição muito focada na força, na potência e na beleza femininas.
O que as galerias e os museus poderiam aprender dessa articulação entre arte e educação tomando como exemplo a vida nas aldeias indígenas? Que memórias acredita que os não indígenas devemos “acordar” para melhorar a relação entre arte, educação e vida?
Eu vejo que a educação e a arte estão totalmente relacionadas. A transmissão de conhecimentos, os fazeres e os saberes ancestrais se conectam na medida em que são repassados, na medida em que essa memória é ativada e é mantida acesa. É uma teia de relações sensíveis que se dão dentro dos territórios indígenas, nas culturas dos povos ancestrais. Percebo que esses espaços institucionais, como galerias e museus, têm muito a aprender com essa relação, desse tecido através de um diálogo verdadeiro e constante, em que a arte transborda na educação e o conhecimento se transmite de uma forma afetiva e artística.
Existe um processo delicado no qual essas instituições devem começar a repensar suas metodologias, repensar seu modo de transmitir e acessar esses conhecimentos que estão muito focados nesse modo tradicional, vivo – que também chamamos de “Escolas Vivas” –, que é uma maneira diferenciada de acessar o conhecimento.Eu acredito que os não indígenas precisam, de certa forma, despertar o respeito e acordar lentamente, lá no profundo do seu interior, a sua própria ancestralidade. Assim, vamos pensando e encontrando essa relação entre a vida, a arte, a educação e a espiritualidade que estão dentro de nós. E da qual não temos como fugir, dessa relação com toda a floresta, com seres visíveis e invisíveis.
Eu acredito que as plantas são seres muito sensíveis, grandes mestras e professoras, que possuem a potência de abrir portais para quem se permite conhecer junto com elas. As plantas têm muito a ensinar sobre a relação entre arte, educação e vida. De certa forma, isso já está acontecendo em muitas exposições, ativações e processos educativos artísticos que esses espaços vêm proporcionando ao mundo. Basta silenciar. Temos que silenciar para escutar mais esse “acordamento”, esse despertar que vai surgindo na sociedade, com esse aprender a enxergar com outros olhos, aprender a respeitar o tempo. Eu acho que essa é uma das memórias que os não indígenas precisam reaprender: respeitar o tempo.
Nesta primeira edição da Revista Latente, vamos debater a mulher nas artes visuais. Como você vê este lugar da mulher artista e da mulher artesã? Há diferenças?
A mulher tem várias potencialidades artísticas, do parir ao amamentar, ao produzir uma forma sensível de afeto e de cuidado diário para com os seus e com o que as rodeiam. A mulher tem naturalmente esse potencial. Agora a mulher artista, a mulher artesã, a mulher que faz arte e que produz pensamento-arte é uma mulher guerreira, que se coloca em constante diálogo com seres que rodeiam a floresta, para que a sua arte seja profunda e seja semente de transformação no mundo. Têm as mulheres artistas que percorrem o mundo, que estão viajando, produzindo conhecimento; e têm as mulheres artistas que estão nos seus territórios, plantando mandioca, colhendo taquara para fazer um cesto, plantando algodão, fiando, tingindo, tecendo, produzindo redes, e transmitindo isso para as criancinhas, para os jovens, para as meninas moças, cuidando dos resguardos, dos partos...
É um processo muito rico. A mulher artista está em muitos lugares ao mesmo tempo, dentro e fora dela mesma, dentro e fora dos territórios. A mulher artista é arte pura porque ela vive em completa conexão com tudo que habita na floresta, ou com tudo que habita no território onde ela habita.
Eu vejo que a mulher artista é semeadora do Teko Porã, do Bem Viver através da sua arte. Eu não consigo ver muita diferença entre a mulher artista e artesã, porque, para mim, a artesã é artista. Essa arte que brota das mãos, dos olhos, do pensamento das mulheres são artes de transformação. Então, pensar as mulheres no mundo das artes visuais é compreender o mundo da mulher no seu lugar, no seu território, no seu corpo, no seu espaço e no seu pensamento.
Fotos autoria de Anai Vera: Bióloga e antropóloga paraguaia que mora no Brasil. Atualmente, realiza seu doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo, com bolsa do BECAL-Paraguay. Sua linha de pesquisa está focada na etnologia das terras baixas sul-americanas, em especial junto aos povos Guarani. Apoia e assessora organizações que trabalham em prol dos Direitos dos Povos Indígenas. Trabalhou 10 anos no setor público, no Ministério de Educação e Ciências e na Secretaria Nacional de Cultura do Paraguai, participando da construção coletiva das políticas públicas com e para os povos indígenas.
Notas
1 Carlos Papá, companheiro da Cristine Takuá, do povo Guarani Mbya, é liderança espiritual, cineasta e responsável pela Escola Viva Ponto de Cultura “Mbya Arandu Porã”, na aldeia Rio Silveiras, em Bertioga (SP).
Doralice Kunha Tatá, falecida em 2017, era uma sábia, grande conhecedora das plantas, e parteira.
O Museu das Culturas Indígenas na cidade de São Paulo foi inaugurado no final de junho de 2021. Para mais informações, acesse: https://museudasculturasindigenas.org.br/.
Em guarani, takua é o bambu ou a taquara.
Em guarani, teko = vida; porã = bom, belo.
Tekoa é um termo guarani que designa a territorialidade do povo Guarani, que está longe de reproduzir uma imagem reduzida, fixa ou atemporal do significado de território, já que este possui dimensões complexas que envolvem diversos níveis sociais, políticos, físicos e cosmológicos.
Em guarani, teko = vida; vai = feio, ruim.
Jaider Esbell (Normandia, 1979 – São Paulo, 2021) foi um artista, ativista, escritor, educador e curador do povo Makuxi, figura central do movimento de consolidação da Arte Indígena Contemporânea no Brasil.
Em guarani, tava = casa.
A exposição Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea ocorreu de setembro a novembro de 2021 no MAM em São Paulo e contou com aparticipação de mais de 34 artistas indígenas, sob curadoria de Jaider Esbell e assistência curatorial de Paula Berbert.
Sandra Benites, do povo Guarani Nhandeva, é antropóloga e curadora de arte. Foi a primeira indígena a ser nomeada curadora do MASP.
Sonia Ara Mirim é indígena, ativista e atualmente uma das Mestres do não Saber do Museu das Culturas Indígenas.
Anita Ekman é uma artista não indígena que trabalha junto aos guarani e outros povos indígenas.
IAIA é o Institute of American Indian Arts, localizado em Santa Fé, Novo México, Estados Unidos.
Anna Dantes, como é chamada Anna Paula Martins, é idealizadora e coordenadora de criação do Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida.
Cristine Takuá
Indígena brasileira, escritora, artesã, filósofa, ativista e professora curadora de exposições. É do povo maxakali, e mora na Terra Indígena Ribeirão Silveira, aldeia do povo Guarani Mbya, localizada na divisa dos municípios de Bertioga e São Sebastião.Formada em Filosofia pela Unesp, atuou como professora da Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’ por doze anos. Na aldeia Guarani do Ribeirão Silveira, também auxilia nos trabalhos espirituais na casa de reza. É uma das fundadoras do Fórum de articulação dos professores indígenas do Estado de SP (FAPISP) e diretora do Instituto Maracá. Participa da coordenação do Museu das Culturas Indígenas, do Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida e coordena o projeto das Escolas Vivas. É uma das autoras do livro "Mulheres de terra e água", lançado pela editora Elefante. Em 2019, atuou como curadora da Mostra Audiovisual Indio.doc, evento cultural voltado para o ativismo artístico e a preservação da memória indígena que foi realizado na unidade da Vila Mariana do SESC-SP. Atuou na formação do educativo do MAM na exposição "Moquém_surarî" com curadoria de Jaider Esbell em 2021. Foi curadora da exposição "Nhe'ẽry - onde os espíritos se banham " sobre a Mata Atlântica junto com Sandra Benites, Carlos Papá e Sonia Ara Mirim no Museu das Culturas Indígenas em 2022. Curadora da exposição "Viva Viva Escola Viva" na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro em 2023. Atualmente está organizando uma exposição junto com a Anita Ekman para o IAIA - Institute of American Indian Arts, localizado em Santa Fé, Novo México, Estados Unidos.
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