— Eunice Coppi
O trabalho de Eunice Coppi possui uma forte relação com a infância vivida em Minas Gerais e suas raízes afro-brasileiras. Participou de diversas oficinas com Toninho Macedo no Projeto Piraquara 1, que mais tarde a convidou para a exposição coletiva no Projeto Arraial, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Desde então tem participado de diversas exposições individuais e coletivas. Esta entrevista foi realizada por Célia Barros e Patricia Ioco, acompanhadas do fotógrafo André Yamamoto, em sua casa e ateliê.
› Eunice Coppi. O meu mundo é de papel (detalhes). Foto: André Yamamoto.
Eunice, hoje você tem um acervo de aproxi- madamente 6 mil esculturas de papel machê que contam diversas histórias baseadas nas suas memórias. Você aprendeu com alguém ou começou sozinha?
Poderia dizer que aprendi com Dona Inácia, amiga da minha avó, que, como ela, também era lavadeira. Ela fazia aquelas panelinhas redondi- nhas de barro com três pezinhos e fazia peixes também, então resolveu ensinar para mim e para minha amiga que brincava comigo, a Tutti.
Só que eu não queria fazer panelinha, acabou que eu nunca fiz uma panelinha.Eu não fazia porque perto da minha casa tinha um clube chamado Mundo Velho, e os meus primos desfilavam num bloco de Carnaval. Eu tinha loucura para poder sair no bloco! Mas a gente não tinha grana, então eu me realizava fazendo o bloco de Carnaval no barro. Daí eu ia lá, fazia a bonequinha de barro com a saia rodada e aquelas botas bonitas. No Mundo Velho, a fantasia era tudo verde e amarelo. Ali eu comecei a me interessar pela técnica, mas eu não sabia o que era arte.
Era uma maneira de você realizar os seus sonhos, por meio do barro?
Sim, meu avô plantava milho e usávamos os cabelinhos do milho e a palha, a casca do milho, para fazer um monte de coisas. Enquanto as meninas brincavam com boneca, faziam as panelinhas e os peixes, eu fazia o meu bloco de Carnaval. Nós não queimávamos esse barro, ficava tudo cru. Nunca queimei o barro, nem os que eu fiz depois, aqui em São José dos Campos. Aqui, no bairro São Judas, tinha muito daquele barro meio roxo meio rosa, que a gente ia buscar na chácara de um conhecido.Eu queria fazer peças grandes, mas era muito pesado, era difícil para carregar. Já tinha feito muita coisa em argila, que vendia na loja de uma amiga, mas, quando participei do Piraquara, conheci a técnica do empapelamento, e então tudo mudou, porque eles ensinavam a fazer os bonecões, e eu vi que a técnica era acessí- vel. Com um pacote de polvilho, você faz um caldeirão de cola, e é fácil de conseguir papel, porque eu uso de todo tipo: papel jornal, saco de cimento, papelão...
Primeiro eu comecei a utilizar a técnica arrumando a minha casa, refor- mando meus móveis. Eu comprei um guarda-roupa novo, e sobrou aquela parte de baixo do guarda-roupa de uma madeira forte, com isso eu fiz uma mesa enorme e peguei o saco de cimento e fiz um pé todo trabalhado. Todo mundo pensava que era couro! (risos). Peguei tábuas de construção e fiz uns bancos grandes e uns menores. Na verdade, não tinha grana para comprar móveis, então dei uma reformada e ficou bem legal. Eu fui inventando, lembrei o que eu fazia quando criança e queria reproduzir aquilo – e estou fazendo até hoje. Foi então que comecei a fazer o rolete2. Acho que eu não vi ninguém fazendo assim. Eu inventei essa técnica, como as máscaras que também são feitas com rolete.
Com essa técnica do rolete você conseguiu fazer bonecos de todos os tamanhos, e a Dona Inácia que ensinou você a trabalhar com a argila vira uma boneca...
Ela e todo mundo, a turma toda, a minha amiguinha Tutti, o Vicente, o pessoal do bloco, os forrozeiros. Porém, eu tive hepatite e fiquei mal, muito fraca. Nesse tempo, eu fui escrevendo, desenhando o que eu ia fazer. Desenhei um monte de coisas, tanto que eu achei até que não daria para fazer. E, no fim, acabei fazendo praticamente tudo. Mas, na verdade, se não fosse a pandemia, eu acho que eu não teria feito tanta coisa. Na vida cotidiana não me sobrava tempo para poder fazer meu projeto, porque trabalhava, tinha que cuidar da casa, dos filhos, dos netos. Mas, como veio a pandemia e não podia receber ninguém nem sair, eu fiquei neurótica, fazendo as coisas que estavam no caderno, e acabou saindo o projeto inteiro.
Adentrar a casa-ateliê de Eunice Coppié percorrer detalhadamente o seu universo de papel repleto de memórias e inúmeras histórias. Foto: André Yamamoto.
O que você considera como o projeto inteiro?
Olha, tem o Passeio no parque, com aquela roda-gigante, tem barca, sombrinha, carrossel, algodão-doce, o cara que fica com a bicicleta vendendo. Tem o Circo, que são os palhaços, as equilibristas e todas as histórias de quando meu avô nos levava para assistir ao circo. Tem várias danças: Congada, Dança das fitas, Folia de Reis, Farra do Boi. Fiz também o Concurso de dança e As brincadeiras, que são 57 brincadeiras diferentes, mas só tem brincadeiras antigas, algumas que eu nem sei o nome. Tem a Beira do rio, África dos meus sonhos, Ponto de ônibus. Tem Grávidas de vários tamanhos, porque eu fiz várias famílias, com as crianças pequenas, o bebezinho no colo. Quando você vai na fila do postinho, começa a chegar um monte de grávidas, umas que vão fazer exame, as mães que estão com o bebe no colo, e é engraçado porque você vê gente de todo jeito, e tem algumas que chamam a sua atenção.
A Prosa dos Pretos Velhos é porque minha avó e meu pai benziam. De 15 em 15 dias ela ia para fazer a obrigação, e eu ia com ela ao centro. Então, eu tenho toda essa lembrança. Eu acabei fazendo o que eu vi quando criança. Eu viajava bastante para diversas cidades do interior com o espetáculo do Piraquara e pude ver muitas manifestações culturais. Ficava des- lumbrada com coisas que eu nunca tinha visto, a Folia de Reis, Jongo, Maracatu... Quando eu vi o Encontro das Bandeiras, foi fantástico.
Eu pensei: tenho que fazer!
› A obra Carnaval da série Aconteceu na Rua Medina, dialogando com máscaras, espelhos e outros objetos.
Foto: André Yamamoto.
Como surgiu a série Aconteceu na Rua Medina?
A rua Medina é a rua da minha casa. Na época, meus filhos eram pequenos, mas eu tenho as fotos dos jornais da época com os blocos de Carnaval e das crianças brincando na rua. Pri- meiro, fiz um bloquinho pequeno, com as figuras que eu lembrava mais, as pessoas da família ou com quem eu tinha mais contato. Depois, com a pandemia, eu fiz o bloco inteiro, que são duzentas e poucas pessoas. Aconteceu na Rua Medina é uma parte da minha vida, dos anos que a gente saía com o bloco de Carnaval.
As diversas cenas que compõem o projeto parecem se originar de expe- riências suas muito particulares. Por exemplo, onde fica esse local que compõe a série Na beira do rio?
De pequena, eu morei numa casa que não tinha água nem luz, em Sabará, Minas Gerais. E a gente tinha que ir buscar a água nesse córrego, que na verdade era um braço do rio das Velhas. A gente pegava as louças sujas, a roupa para lavar e ia para a beira do rio. Enquanto minha mãe lavava a roupa, eu, meu irmão e minha prima tínhamos que encher as latas de água para o dia inteiro. Depois, a gente voltava para nadar, pescar, brincar e tudo acontecia na beira do rio. Tinha umas barraquinhas que vendiam peixe frito, vinha o pessoal com cavalo carregado de lenha e outros com mandioca. Estou louca para terminar esse projeto, não acaba mais...
No caso da série África dos meus sonhos, você visitou algum lugar específico? Como surgiram essas imagens?
O pessoal em Minas gostava de ter essas carrancas para espantar os maus espíritos, então, quando pequena, em minha casa tinha bastante carranca. Fui lembrando as coisas que meu pai e meu avô faziam, daí eu comecei também. Mas depois eu me invoquei com as carrancas, e hoje só sobraram duas. A carranca é essa máscara grandona, que tem aqueles dentões. Meu pai fazia de madeira, só que eu queria fazer maior, mas no barro é com- plicado porque fica pesado. Com o papel machê eu fiz umas peças bem grandes, fiz uma mãe africana, um casal com roupas e colares e muitas máscaras, máscaras de todo jeito e tamanho.
Por coincidência, nessa mesma época, uma pessoa do Museu do Folclore3 me ligou, para ver a possibilidade de fazer um intercâmbio em África, e aí eu me empolguei com a ideia e fiz muito mais do que tinha pensado inicial- mente. No fim, a viagem acabou por não acontecer, e eu fiz tudo a partir da minha imaginação, não viajei nem fui até lá.
São várias séries, que compõem um mesmo projeto, no qual você trabalha sistematicamente desde os anos 1990. No seu entender, qual é o projeto que engloba tudo?
“Meu mundo é de papel.” Porque acaba sendo tudo: os sonhos, as memórias, o que acontece... Cada projeto conta uma história. Posso fazer várias exposições menores, mas meu sonho é expor o projeto inteiro. Eu acredito que Deus vai me dar oportunidade. Acho que ele não ia pôr esse sonho no meu coração e não me fazer realizá-lo.
› Nesta imagem, parte da cena que compõea série Ponto de ônibus saiu da caixa onde fica guardada e que também serve de expositor.
Foto: André Yamamoto.
› Com mais de 6 mil peças catalogadas, Eunice mantémo seu acervo organizado de forma criativa, seja exposto na sua casa, seja embalado e pronto para ser montado em uma exposição. Foto: André Yamamoto.
Este jeito de organizar seu acervo é muito interessante. A forma como você concebe o espaço do ateliê e sua própria casa dá vontade que outras pessoas conheçam esse lugar. Você sempre fez assim?
Eu já pintei esta casa de tanto jeito. Eu já mudei várias vezes. Enjôo e mudo. Porque eu durmo pouco e fico elaborando, vou fazendo,
quando vejo estou ali, trabalhan- do. Um dia meu marido dormiu no sofá aqui, na cozinha, e acordou no meio da noite, devia ser uma hora ou duas da manhã. Levou um susto, porque eu estava empoleirada num banco pintando aquelas bolas pretas (risos).
Quando comecei a usar as caixas para guardar, fiz uma pintura mais simples, que era só para não ficar feio, porque eu gosto das coisas mais enfeitadinhas. Aos poucos fui organizando e planejando para fazer as casinhas, assim eu guardo as peças arrumadinhas no lugar, pro- tegidas, e na hora da exposição é só montar. Antes eu aproveitava o TNT e lençóis velhos para embalar, mas agora eu estou comprando saqui- nhos de acordo com o tamanho para as peças poderem viajar.
Qualquer pessoa consegue montar: eu coloco o número, as peças têm o número embaixo e a caixa também. Eu tenho uma pasta com a lista completa e todas as fotos. Conforme a coisa foi crescendo e as exposições foram surgindo, eu fui estruturando.
› Dona Raimunda também virou boneca, com a sua garrafinha de cachaça escondida na bolsa.
Foto: André Yamamoto.
NOTAS
Projeto Piraquara, promovido pelo Centro de Estudos da Cultura Popular (CECP) com apoio da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), em São José dos Campos. Foi criado em 1987 com o intuito de resgatare preservar a riqueza da cultura popular brasileirae colaborar com a transformação da sociedade, por meio da informação, da formação e da divulgação das manifestações folclóricas.
A técnica do rolete é usada para confeccionar diversos artesanatos de papel, geralmenteesteiras, tapetes, cestas e pratos, mas Eunice desenvolveu a mesma técnica para estruturarsuas esculturas. Para saber mais sobre a técnicae a história de Eunice Coppi, acesse: https:// www.youtube.com/watch?v=EVRJ_hyIrAs
O Museu do Folclore é um espaço da Fundação Cultural Cassiano Ricardo que funciona noParque da Cidade, em São José dos Camposdesde 1997. Sua gestão é feita pelo CECP (Centro de Estudos da Cultura Popular), organizaçãoda sociedade civil sem fins lucrativos.
Eunice Coppi
Nasceu em Sabará, Minas Gerais, e mora em São José dos Campos, São Paulo, desde os 12 anos. Seu trabalho tem forte relação com a infância vivida em Minas Gerais e suas raízes afro-brasileiras, quando aprendeu a criar seus próprios brinquedos com argila e palha de milho. Em 1991, participou da primeira exposição coletiva no Projeto Arraial, com curadoria de Toninho Macedo, na unidade Pompeia do Sesc São Paulo. Desde então, tem participado de diversas exposições coletivas e individuais, com destaque para as mais recentes: O papel e as manifestações do divino, no Parque Vicentina Aranha, em São José dos Campos, São Paulo, em 2023; e Presépios de Eunice Coppi, no Museu Histórico e Pedagógico Maria Leopoldina, em Pindamonhangaba, São Paulo, em 2022. Como escritora, publicou o livro Uma cachorrinha chamada Lindinha, em 2021.
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