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O QUE FICA DAQUILO QUE NÃO DEIXA DE SER?

Renata Sparapan




A matéria rígida, formada por sólidos torrões compactados pelo tempo duro da existência, carrega cheiros, cores e texturas. Aglutina com o fluido que vem de fora e se transforma na necessidade da expressão. Talvez argila, sociedade ou arte. Quem sabe barro, caipira ou figura. Carregam seus elementos firmados nas origens e afetados pelas latentes mudanças dos movimentos.



a arte das figureiras
a arte das figureiras

› Argila rosa e roxa colhida pelo Núcleo Familiar Lili Figureira, em São José dos Campos (2021). Foto: Renata Sparapan.


O Vale do Paraíba paulista, território indígena, invadido pelos colonizadores e constituído pelas resistências negras, possui em sua vastidão uma artéria vital chamada rio Paraíba e, junto de seus afluentes, tornam-se elementos fundamentais para as dinâmicas sociais, culturais e econômicas que formaram a região. É nesse contexto compos- to de solo argiloso e sociedade caipira que surge a cerâmica figurativa do Vale, também conhecida como figuras produzidas por figureiras.


As figuras representam os cotidianos das ruralida- des, os contos narrados de imaginários vividos de

fato, manifestações de fé e devoção, entre outros elementos que compõem as histórias de vida de quem as produz. São mais de 150 anos de oralidades e relatos letrados de suas existências, surgidas nas áreas rurais da região e carregadas de valores, tradições, sensibilidades e domínios que transformam o barro em peças modeladas pelas memórias coloridas pintadas pelas gerações. Atualmente, Taubaté é a cidade que mais se destaca nas produções, principalmente as figureiras da Rua Imaculada, mas também existem figureiras em outras localidades, como São José dos Campos.


Em 2023 defendi meu mestrado no Instituto de Artes da Unesp e tive como temática as figuras como representação da cultura caipira. Foram muitas as epifanias sentidas ao longo da pesquisa, e, dentre tantas possíveis, tratarei aqui sobre os processos e os procedimentos que me encantam nessa arte.


A começar por este termo: arte. Muitas vezes – antes mesmo de iniciar a pesquisa – quis confrontá-lo com artesanato, comumente uti- lizado para classificar a produção das figureiras. Eram várias perguntas que pairavam em minhas inquietações: Por que as figureiras são referenciadas como artesanato? Qual perspectiva é possível para a leitura de seus trabalhos pelo viés artístico? Quem dita o que é cada um?


No entendimento de tantas camadas que tais termos possuem e as consequências que geram, considerei que realizar o mestrado em um pro- grama de Artes para falar sobre as figureiras era ocupar espaços de construção dos discursos e elaborar outras camadas de interpretações – e, para tal, valorizar o fazer artístico dessas mulheres dentro de seus contextos culturais e territoriais, referenciar seus protagonismos na construção das narrativas e compreender os significados de suas concepções artísticas e representações.


Trago aqui a visualidade da feitura das figuras, com a intenção de descrever brevemente a relação entre a matéria-prima e transformações que impactaram a produção. É interessante pensarmos em um recorte temporal de um “antes” e um “agora” para descrevê-la, levando em consideração que há algumas décadas as figureiras viviam em áreas rurais que passaram por processos de urbanização. Assim, as etapas são marcadas por adaptações que ressignificam seus procedimentos, sem deixar de expressar suas identidades.


Curiosamente, a primeira etapa para se fazer uma figura se faz presente no “antes”, mas “agora” é passado na memória. Vou explicar melhor: a figura se inicia com a coleta do barro, elemento de profunda relação com a vivência rural, seja para a produção de figuras, utensílios domésticos, casas ou cultivo de alimentos. Antes, com enxadas e pás, o barro era colhido nos barrancos próximo aos riachos a que as figureiras tinham acesso, selecionados no local para não haver desperdício. Seja sozinha, seja acompanhada da vizinhança – mulheres e crianças –, a figureira coletava o “bom barro” reconhecendo seu potencial plástico para a produção das figuras. Depois de retirado, levavam até os quintais para ser beneficiado, eli- minar pedras, impurezas e outras substâncias que pudessem prejudicar a produção. Para retirar as bolhas de ar, socavam a argila com pedaços de pau ou usavam moedores de café para apurar sua maleabilidade. Repare que as ferramentas utiliza- das eram usuais no cotidiano da roça.


Agora, essa etapa não é mais praticada como antes, pois há poluição e desgaste dos riachos por causa dos impactos ambientais que a industrialização e a urbanização trouxeram para as áreas da coleta e, consequentemente, para a vida da população. Atualmente, a argila é comprada de terceiros e, na maioria das vezes, já vem pronta para uso. Porém, isso não significa que não ocorre o domínio dessa etapa até os dias de hoje, muito pelo contrário, continua presente na sabedoria das figureiras, e em seus relatos fazem questão de compartilhá-la.




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› Figuras de Eugênia da Silva secando [s.d.] Acervo do Museu do Folclore de São José dos Campos.




A etapa seguinte, a modelagem, abrange as técnicas para a elaboração da estrutura das peças, e nela cada figureira aplica o método com que se sente mais desenvolta. Algumas vão montando a peça esticando a argila, outras vão emendando partes. Aqui, saber o que é um “bom barro” é tão essencial quanto a criatividade de fazer a peça, visto que há uma ligação direta entre os limites plásticos da matéria e a intenção na modelagem para a criação. Esteticamente, as figuras não possuem proporções regulares, por exemplo, podem ter braços e cabeças grandes e pernas muito menores ou uma galinha e uma vaca terem o mesmo tamanho. É possível afirmar que isso se deve à escolha do uso mínimo de materiais para estruturar as peças, indo de encontro à noção dos mínimos vitais descritos por Antonio Candido sobre a sociedade caipira. Vez ou outra se faz uso de palitos ou arames, mas não é preceito utilizar algo além da própria argila.


O acabamento também é uma parte importante do processo, possibilitando a criação de texturas ou alisamentos para evitar rachaduras, um arremate para finalizar a modelagem, possibilitando interferir em alguma parte, acrescentar detalhes antes da secagem. Essa, por sinal, é uma característica significativa dessa arte, a secagem se dá “no tempo” de maneira natural, ou seja, é uma cerâmica sem queima. No “antes”, as figureiras usavam seus fogões a lenha para auxiliar no processo da cura e, depois, deixar ao sol. Agora, a técnica continua sendo empregada, mas sem o auxílio de utensílio doméstico que já não é tão comum nas casas e, em alguns casos, optam até pela queima em fornos elétricos.



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› Maria Benedita Vieira (Mudinha) preparando a tinta, 1999. Acervo do Museu do Folclore de São José dos Campos.





Essa característica da não queima foi algo que me chamou muito a atenção, por entender que são peças frágeis que sofrem avarias com facilidade. Ao pensar no contexto do surgimento das figuras nas ruralidades, compreendo que, ao mesmo tempo que há abundância da matéria-prima, existe a não acumulação por parte da sociedade caipira. O mínimo necessário é suficiente para técnicas, moradas, ferramentas ou materiais. A abundância do caipira está na solidariedade, na devoção, nas celebrações, nas cores, nas músicas, nas comidas, nos cultivos da vida e da alma.



Por fim, a pintura compõe a última etapa, trazendo as cores vivas para a construção de significados e sentidos. Geralmente, o que se pinta é o que se vê, seja nas vestes dos santos, nas tonalidades de peles, nas roupas ou nos animais, existe a intenção de reproduzir a visualidade de seus mundos. Porém, também ocorre a liberdade de escolha para usarem outras cores que não correspondem com o real.



Antigamente, as figureiras produziam suas próprias tintas com pigmentos naturais ou temperando a cola com pó xadrez, até mesmo os pincéis eram confeccionados com materiais de seus quintais, como gravetos, painas ou algodões. Hoje, as tintas e os pincéis são industrializados.

A cerâmica figurativa do Vale acompanha em sua produção as mudanças sociais, territoriais e econômicas, necessitando se adaptar para a continuidade da feitura. O tempo é um dos elementos que modela a tradição de fazer figuras. Porém, ele não limita o sentido da produção, mas se integra às memórias e adapta as expressões artísticas de representações criadas há gerações por quem conta sua história com a voz do barro.






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› Detalhe da obra Procissão do Divino de 1999, de autoria do Núcleo Familiar Lili Figureira. Acervo do Museu do Folclore de São José dos Campos. Foto: Renata Sparapan, 2021.



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Presépio de Maria Benedita dos Santos (Lili Figureira), [s.d.]. Acervo Museu do Folclorede São José dos Campos.




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BIBLIOGRAFIA


SPARAPAN, Renata. Núcleo familiar Lili Figureira: a arte figurativa do Vale do Paraíba como representação da identidade caipira paulista. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2023.







 

Renata Sparapan


Nascida, criada e formada pelos quintais dos avós em Jaú e Igaraçu do Tietê. Atualmente Renata mora em São José dos Campos. Mestra em Artes pela Universidade Estadual Paulista, graduada em Ciências Sociais pela mesma instituição, cursa licenciatura em Artes pelo Claretiano. Desde 2014 atua como pesquisadora, arte-educadora e produtora nas áreas do patrimônio cultural e socioeducação. Passou por instituições como Instituto e Museu Mazzaropi e Museu do Folclore de São José dos Campos. Realiza consultorias, curadorias e formações voltadas para temáticas do patrimônio cultural e identidade caipira, foco principal de suas pesquisas. Encanta-se pelos interiores, escreve sobre o cotidiano e fotografa festas com bandeirinhas.

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