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PARA QUE SERVE UMA EXPOSIÇÃO?



— Célia Barros



Pensar sobre uma exposição precisa ter em consideração como se organizou o conjunto de articulações que movimentaram os agentes necessários à sua realização. Em outros tempos esse nome poderia ter diversos apelidos, dependendo da área de conhecimento a que a exposição se reportava, mas no contexto artístico e ocidental do século XX ganhou o nome de curadoria. Diversos fatores fizeram que a experiência da museologia em paralelo com as artes visuais alastrasse a tarefa curatorial para outras esferas*1. Antes se definindo como direção artística, gestão, edição, coordenação ou organização, o exercício da curadoria surge num momento de fragmentação da história linear e declínio da crítica de arte entendida como o campo de conhecimento que até então examinava, acompanhava e validava determinadas produções artísticas, tendo como umas das estratégias criar distinções entre elas.


Uma das funções da curadoria é propor momentos expositivos de narrativas temporárias, em que as imagens*2 dialogam mais pela presença, pela separação ou pela ausência no espaço físico do que pela ordem e pelo sentido do texto, que passa a ser revisto, revisitado, contestado, refutado ou contrariado conforme a necessidade de criar outras linhas de sentidos, verdades e legitimações. A exposição se configura, então, como um campo de ação efêmero e proposições transitórias, em que se reorganizam discursos e se inserem novos agentes, de tal forma que o mundo se viu polinizado de curadorias provocando desconforto entre aqueles especialistas que entendem a detenção de um título como autorização. Mais que uma qualificação, hoje se pode entender a atuação curatorial como um propósito que se utiliza do ato expositivo para provocar dinâmicas de sentidos no espaço e, por conseguinte, no mundo.




Expor implica o deslocamento do íntimo, sair da esfera do privado e do cotidiano para manifestar-se publicamente e participar de forma ativa das controvérsias da imaginação coletiva que configuram a cosmologia das imagens atuais. Expor-se é um direito de cidadania que precisa ser generalizado, sabendo que num ambiente verdadeiramente democrático tornar-se público também ocasiona a perda de controle do discurso.



Se pensamos sobre o ato de expor a partir dos registros de diferentes épocas, como pinturas em cavernas, gravuras em menires*3, formações de cromeleques, disposições internas de pirâmides (em que nem sempre temos clareza de quem é, ou foi, o público desse ato/imagem), ou a partir da organização de feiras, prateleiras de supermercado, vitrines de lojas, entre tantos outros momentos em que alguma necessidade levou as pessoas a organizar objetos ou imagens (no intuito de propor uma leitura para um público específico que pode conduzir ou não a um ato determinado), precisamos ter em conta uma figura sem a qual a inter- locução se torna inexistente: o público, termo que alguns dicionários oferecem como um dos sinônimos de popular. Perante a dificuldade de definir aqui o que seria o público de uma exposição, podemos inferir que quem ocupa esse lugar estará, à partida, num lugar menos ativo, limitado no seu potencial propositivo, com reduzido destaque e pouca ou nenhuma visibilidade.


Sem dúvida, qualquer experiência/vivência com o mundo e, por conseguinte, com o objeto artístico conduz a diversos aprendizados, reflexões e intuições sobre omundoeavidacomoum todo. Mas, quando repetimos, como sociedade, consecutivamente, o mesmo gesto de disponibilizar a uma amplitude de pessoas que conformam o “público geral” de uma instituição cultural a produção de um grupo limitado de agentes culturais, estamos facilitando um projeto pedagógico que aposta na hierarquia e no conhecimento como via de mão única, em que os que produzem (artistas, curadores, gestores culturais) ensinam/mostram/ propõem a um público que não tem, ou parcamente tem, a oportunidade de retrucar.


O que as pessoas experienciaram, suas reflexões, suas vontades e suas intuições, passa fugazmente pela instituição sem que tenhamos condições de ser impactados por essas experiências vividas, mantendo o espaço cultural inerte, intransformável, ou seja, insensível. Prova disso, é que apenas muito recentemente começa- mos a refletir sobre a história do público das instituições, que, como bem diz Pablo Helguera*4, não é uma massa uniforme. A partir desse conhecimento, como podemos entender e materializar, no campo das artes visuais, a provocação do ex-ministro Gilberto Gil de nos tornarmos prossumidores*5, ou seja, agentes culturais que transitam em suas posições na economia cultural, atuando simultaneamente como pro- dutores e consumidores?


Ou, ainda, como uma exposição pode colaborar para a transformação do sistema das artes visuais desassociando-se de apenas um único mercado de arte soberano e fortalecer a possibilidade de outras economias que permitam o surgimento de artistas de diferentes perfis, assim como do reconhecimento de novos e diferentes públicos?


Podemos entender o ato expositivo como uma ação democrática, sem que isso signifique ampliar o número de pessoas atendidas, mas de criar condições para escutarmos a repercussão das vivências do público no ambiente da exposição, de forma que suas reflexões e suas criações possam reverberar nas instituições.


Diversos artistas têm explorado o aspecto relacional em suas obras, incorporando ações permeadas pelo gesto do público. Uma referência fundamental desse pensamento é a artista Lygia Clark, cuja investigação artística, permeada pelo estudo da psicanálise, conduz a uma desmaterialização do gesto contemplativo até desembocar em processos colaborativos em que o público é convidado a colaborar com a ação criadora, desde uma perspectiva tão íntima que problematiza a fundo a exposição de suas obras e de suas investigações plásticas. Expor Lygia Clark vai muito além de expor suas obras, implicando diretamente a forma como o público poderá entrar em contato com suas proposições. A exposição recente na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Ana Maria Maia e Pollyana Quintella*6, optou por recriar um espaço de ateliê de dança que remetia às aulas que a artista ofereceu na Sorbonne, onde, em parceria íntima com os participantes, criou diversas proposições-obra. Nesse momento expositivo, os materiais que a artista utilizava foram apresentados como dispositivos para a ação, catalisadores de ideias e processos, relembrando a ética fundamental de seu fazer artístico que se opunha à ideia de contemplação passiva: a obra é seu ato*7.




curadoria - exposição ateliê

› Stela Barbieri. Banho de canto, 2018. Foto: Acervo da artista.



Em 2014, Stela Barbieri, artista, contadora de histórias, autora, educadora e curadora desenvolveu o projeto Lugares, criando espaços de encontro em que o estar junto e o fazer coletivo é a razão de ser das obras-oficinas e a sua materialização assume um papel de proposição investigativa e de invenção por parte do público. Cada “Lugar” transforma-se num espaço sensorial de criação de narrativas fluidas e efêmeras, em que o gesto mobiliza o pensamento. Em 2018, a artista cria Banho de canto, uma estrutura que convida os participantes a tocar e cantar de forma improvisada, criando uma imersão sonora. Em ambos os casos, trata-se de obras-oficinas nas quais o fazer artístico-propositivo da artista convoca o ato criativo do interlocutor para que a obra – a experiência criativa – possa acontecer.




Ambas as artistas provocam as fronteiras inóspitas do sistema de arte contemporânea: Lygia Clark transi- tou para outras áreas do conhecimento, como a dança e a psicanálise, criando um desconforto no entendi- mento de sua obra: Como vender, como expor, como contemplar, como usar? Ao atravessar os lugares estabelecidos entre público e artista, Lygia atualizou a necessidade criativa do ser humano e a urgência de colocar essa expressão no mundo. Stela Barbieri estabelece pontos com processos educativos que não hierarquizam saberes nem determinam o que deve ser aprendido, mas se disponibilizam para a descoberta coletiva. Num mundo habitado por museus que ainda definem o que deve ser visto, entendido e sentido, o trabalho dessas artistas nos permite vislumbrar possibilidades de fricção com o sistema.



COMO VENDER, COMO EXPOR,COMO CONTEMPLAR, COMO USAR?


Conceber exposições-ateliê tem sido uma forma de explorar outras dinâmicas e de tentar sair do formato exposição-apresentação. Conciliar espaços de produção e de exibição pode facilitar uma aproximação nas relações entre público e artistas, confundindo os agenciamentos de cada um e diluindo diferenças. A exposição-ateliê surge assim como uma proposta de enfatizar o impulso criativo como uma característica inata do ser humano, que necessita de espaço e tempo para praticá-la e assim exercer a sua cidadania. Com estas questões em mente, realizei a curadoria de duas exposições que, de formas distintas, investigavam essas questões:




curadoria - exposição ateliê


Ocupação Xilográfica*8 procurou realçar a vitalidade de processos contemporâneos da xilogravura em São Paulo e a intensa pesquisa que cada um dos onze artistas desenvolve. As obras expostas apresentaram diversos formatos e escalas de trabalho, desde o livro de artista a interferências no edifício, além de experiências a partir da matriz xilográfica: a madeira que, como linguagem e resistência material, afeta a criação das imagens. Os artistas que participaram da mostra usufruíram de diferentes aprendizagens práticas e teóricas que afetam seus processos criativos. Para seguir explorando a geração de imagens a partir da vivência coletiva, a exposição contou com um ateliê e uma programação de oficinas em que o público experimentou diferentes técnicas, assim como a exposição temporária de suas produções, de modo a ampliar nossa maneira de imaginar a imagem gravada. Houve o cuidado de definir um espaço de con- vivência entre a mostra e o ateliê, de forma que o aprendizado aconteça entre a fruição das obras, a experimentação técnica e o reconhecimento das ferramentas e suas possibilidades de exploração, além de um espaço expositivo no qual o público negociou seus discursos expositivos.




curadoria - exposição ateliê

› Vista geral da Ocupação Xilográfica, com obras de Julia Bastos, Santidio Pereira e Kamila Vasques, 2022.

Foto: Everton Ballardin.


curadoria - exposição ateliê

› Vista geral da Ocupação Xilográfica,com obras de Fernando Mariano, Taís Melo e ateliê. Foto: Everton Ballardin.





A exposição Alento: dos fios, do tecer e das tramas*9 contou com 45 obras de mulheres artistas que utilizam a arte têxtil como base para suas produções e contempla artistas de diferentes regiões do Brasil. Alentar ou demorar-se refere-se à matéria invisível que dá corpo às obras e contrapõe-se ao acelerar que vivemos hoje, nos nossos modos de produzir, pensar e ser. Entendendo que os fios atravessam tempos e contextos e que as linhas emaranhadas são território fértil para um conjunto de situações que envolvem ancestralidade e contemporaneidade, memória comunitária e intimidade, escuta coletiva, muitas trocas e um tempo que se di tância do imediatismo digital atual. O caráter processual e atemporal que permeia o processo criativo das artistas envolvidas evidenciou a necessidade de expor o ato de bordar, tecer e coser, como forma de registrar processos de trabalho e multiplicar os sentidos dessas produções. Corroborando essa premissa, a expografia previu, em seu espaço, a realização de oficinas, cursos e processos de trabalho abertos ao público.




curadoria - exposição ateliê

› Vista geral da exposição Alento: dos fios, do tecer e das tramas, com obras de Gimena Romero, Sueli Maxacali e Artesãs de São Silvestre, na unidade de São José dos Campos do Sesc São Paulo, 2023. Foto: Célia Barros.






Nessas experiências expositivas, ativamos intercâmbios de olhares e permeamos funções sociais entre público e artistas. Tornar-se prossumidor requer encontrar novas formas de expor e vivenciar os processos artísticos que permitam relações mais salutares, pouco hierárquicas e menos reguladas por um único mercado. Como Lygia Clark percebeu no aprofundamento de sua pesquisa, o ato criativo é a ação fundamental que precisa ser respeitada, a materialização dos movimentos mais íntimos que, ao serem externalizados, desdobram-se em novas direções criativas.



curadoria - exposição ateliê

› 1. Máscaras, Sueli Macalali. Foto: Lindsay ribeiro

› 2. Detalhe da obra r(existir), Rochele Beatriz Foto: Rochelle Beatriz.

› 3. Nukun Batxi kayá [Nossa roupa tradicional] Rita Sales Dani Huni KuinFoto: Mariana Krauss.

› 4. Série: Gracia (detalhe), Gimena Romero Foto: Lindsay Ribeiro

› 5. Detalhe da obra r(existir), Rochele Beatriz Foto: Rochelle Beatriz.

› 6. Obras de Sueli Maxacali e Artesãs de São Silvestre Foto: Lindsay Ribeiro

› 7. r(existir) Rochele Beatriz Foto: Acervo da artista

› 8. Série: Gracia, Gimena Romero Foto: Mariana Krauss



 

NOTAS

  1. Não é objetivo deste texto investigar a fundoo surgimento, a expansão e a disseminação da curadoriapara outras áreas e como isso fez, e ainda faz, parte deuma estratégia de agregar valor a determinadas ações ou produtos. No entanto, a popularização do termo provocou discordâncias sobre o que configura a ação curatorial.Não se tratando simplesmente de uma seleção, aproximando-se mais de um gesto que procura linhas narrativas (ou antidiscursivas), a sua vulgarização generalizou o termo, tornando-o uma função mais facilmente compreendida que uma “coordenação”, “direção” ou “editoria”.

  2. Aqui nos referimos a imagens como todas as materialidades que possam compor uma exposição,sejam elas pinturas, esculturas, instalações, performances, ações, sons ou textos, nas mais diversas configurações.

  3. Menir, ou menhir, é um monumento pré-históricode pedra, de formato alongado e cravado na terraem posição vertical, frequentemente contendoinscrições gravadas. Os cromeleques são conjuntos de menires, que podem variar em quantidade, geralmente dispostos de forma circular em recintos abertos.

  4. HELGUERA, Pablo. Públicos, museos y unsin fin de malentendidos. Palestra on-line inRESET | Conversación con Pablo Helguera.

  5. GIL, Gilberto. Os papéis do Estado e nação notempo da diversidade. In: ALMEIDA, Armando (org.).Cultura pela palavra: coletânea de ensaios, entrevistas e discursos dos Ministros da Cultura 2003-2010/GilbertoGil e Juca Ferreira. Versal: Rio de Janeiro, 2013. p. 28.

  6. Exposição Lygia Clark, Projeto para um planeta patente na Pinacoteca do Estado até agosto de2024: https://pinacoteca.org.br/programacao/ exposicoes/lygia-clark-projeto-para-um-planeta/

  7. CLARK, Lygia. Do ato. Texto da artista escrito em1965, disponível na seção Obras Literárias, disponível em:https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/59274/do-ato.

  8. Exposição Ocupação Xilográfica, na unidade de Biriguido Sesc São Paulo, realizada em 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f20SLyUAVUo

  9. Apresentação da exposição Alento: do tecer,dos fios e das tramas, realizada na unidade deSão José dos Campos do Sesc São Pauloentre novembro de 2022 e julho de 2023. Disponívelem: https://www.youtube.com/watch?v=7-HgidSRPKs




 

Célia Barros


É mestra em Produções Artísticas e Investigação pela Universitat de Barcelona. Desenvolve projetos de exposições em que articula ações de curadoria e mediação em arte contemporânea. Investiga os deslocamentos entre o artesanal e a arte contemporânea e as relações entre arte e saúde em processos expositivos. Destacam-se os projetos Encontros Êxtimos (2024-2023), Pausa Onírica (2020-2021) e Latente Incomum (2021); e as exposições Encontros Êxtimos, na Casa Contemporânea, em São Paulo (2024), e na Casa na Escada Colorida, no Rio de Janeiro (2023); Ocupação Xilográfica, no Sesc Birigui, em São Paulo; Alento, no Sesc São José dos Campos (2022); Xilograficamente, na Galeria de Artes Visuais – Sesi (2021); 14o Salão Nacional de Arte de Itajaí (2018); pedras são preciosas, em Botucatu, São Paulo, selecionado para o edital do ProAC (2016); e Curadoria Coletiva, com apoio do SISEM-SP (2014).

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