— Gui Teixeira
Entrevista realizada por Fernanda Albuquerque
O corpo é material de trabalho para Gui Teixeira. Em muitas obras desse artista que vive entre Piracicaba e São Paulo, o público é convidado a participar e experimentar suas proposições com os cinco sentidos. Nesta entrevista, Gui fala sobre a presença do corpo, da colaboração, do jogo e da brincadeira em sua produção e reflete sobre quanto esses aspectos também estão relacionados a sua experiência como educador.
› Gui Teixeira,Objeto suprematista, 2007. Foto: acervo pessoal.
Em muitos dos seus trabalhos, o corpo é chamado à ação, a envolver-se de modo afetivo, atento e divertido. É o caso daParede suprematista (2020) e do Social board (2010), para citar dois exemplos. Pode comentar um pouco sobre a pre- sença do corpo nas suas obras?
Eu me considero um artista do espaço e das coisas. Embora eu desenhe, pinte, foto- grafe e grave vídeos, sempre me identifi- quei mais com trabalhos tridimensionais. Uma parte dessa identificação talvez venha do fato de sentirmos esses traba- lhos com o corpo. A escultura, sendo tridi- mensional, divide a mesma realidade que nós. Estamos sujeitos às mesmas leis da física. Sabemos com o nosso corpo o que é a gravidade, o equilíbrio, o movimento, a temperatura, a textura etc.
E a gravidade é um assunto muito presente nos projetos que eu faço, essa dualida- de entre peso e leveza, a luta entre uma força que nos puxa para baixo e a vontade de subir, de se libertar. Uma das primeiras obras que fiz que convidava o público a se envolver fisicamente foi o Objeto suprematista (2007). Uma cama elástica construída com madeira de demolição e tiras de pneu trançadas, formando um quadrado preto, onde o público pode pular e brincar, sentindo-se leve no ar. O título faz referência à famosa pintura O quadrado preto, de Malevich (1879- 1935), fundador do Suprematismo.
No Manifesto suprematista, Malevich propõe que o suprematismo iria libertar espiritualmente a humanidade do futuro. É quase como se ele estivesse inventando uma religião, e não um movimento artístico. Eu gosto dessa pretensão das vanguardas de querer reinventar a vida, reinventar o ser humano. Mas, esse trabalho aborda essas ideias com humor e leveza e principalmente trazendo o corpo para essa “libertação”.
De certo modo, é algo semelhante ao que foi feito pelo movimento Neoconcreto nos anos 1960 e 1970, quando aqueles artistas trouxeram o corpo do público para dentro da obra. A Parede suprematista (2011), que é uma parede de escalada esportiva feita de madeira também reaproveitada, lembra uma pintura suprematista. E minha ideia era apresentá-la junto ao Objeto, na Galeria Vermelho, mas, por questões de segurança, optamos por apresentar só o Objeto suprematista. A Parede só foi exposta quatro anos mais tarde, em 2011, no Quebec, Canadá, em uma residência de que participei. E em 2012, uma nova versão foi feita para o Rumos Itaú Cultural num espaço cultural independente na Zona Sul de São Paulo.
Na escalada esportiva, para subir, você precisa do apoio, do suporte de outra pessoa. Então, no trabalho, você tem essa possibilidade de colaboração, de fazer junto, de um dar apoio ao outro. E, para isso, é fundamental estabelecer uma relação de confiança, porque quanto mais confiar na pessoa que está lhe dando suporte para escalar, mais você se arrisca, mais você consegue “vencer a gravidade”.
Conte um pouco mais sobre esse aspecto da colaboração nos seus trabalhos.
A colaboração também está muito presente no Social board, que é um skate coletivo apresentado pela primeira vez na Mostra Verbo, na Galeria Vermelho, em 2010. Ele é um skate redondo. É como se fossem cinco skates emendados formando um círculo. Esse trabalho surgiu de uma experiência pessoal com meus filhos, que estavam começando a andar de skate. Daí eu também comprei um para mim e voltei a andar. E então comecei a pensar que eu deveria fazer uma escultura com skate que propusesse uma experiência coletiva. O Social board tem essa dimensão da colaboração. Ele pode girar muito rápido sem sair do lugar, funcionando como um gira-gira de playground.
É muito interessante ver pessoas que não se conhecem rindo juntas, se abraçando e vivendo uma experiência corporal muito intensa, se divertindo como crianças. Mas, para isso acontecer, precisa haver colaboração e confiança mútua. Ao ganhar velocidade, a força centrífuga joga as pessoas para fora do skate circular. Mas, se houver mais de uma pessoa girando, um faz o contrapeso para o outro. Só é possível girar rápido se houver apoio, equilíbrio e a força do outro ou de um grupo. E o objeto estimula esse tipo de relação entre as pessoas.
› Gui Teixeira, Social board na exposição Dois Pontos. Recife, 2010.
Tem também o Massagem social, que desenhei como projeto, pouco depois de fazer o Social board. A ideia era fazer um círculo com aquelas cadeiras de massagem rápida que a gente vê em aeroportos, lugares de passagem, feiras etc. Só que eu coloquei uma atrás da outra, de modo que, quando você se senta numa das cadeiras para receber a massagem, também está na posição de fazer massagem em alguém. E, se todas as cadeiras estiverem ocupadas, forma-se um círculo de massagem. O círculo de massagem é um exercício coletivo muito praticado por grupos de teatro ou dança e aparece no livro 200 jogos para atores e não atores, de Augusto Boal (1931-2009). Esse é um dos primeiros jogos propostos, pois ele considera fundamental, para se fazer teatro, desenvolver o sentimento de cuidado e con- fiança.
A escultura Massagem social, que é um projeto de 2012, só foi realizada em 2022, por questões financeiras. Foi apresentada quando fiz uma exposição individual na Sé Galeria. Achei que o momento foi muito interessante, pois estávamos recém saindo da pandemia, num período muito complicado no Brasil, muita divisão política, muito ódio. E o trabalho propõe justamente o cuidado do coletivo com o coletivo e a importância do toque físico para o nosso bem-estar.
› Gui Teixeira,Massagem Social, 2022. Foto: acervo pessoal
Outro elemento que chama atenção na sua trajetória é a experiência como educador. Como ela se expressa nos seus trabalhos?
Desde a faculdade, eu tinha esse desejo de ser artista e também professor. Comecei a atuar no campo da educação ainda no segundo ano do curso. Primeiro em museus e exposições, como mediador. E essa experiência de educação em exposições me deixou muito sensível para tentar perceber como o público de uma exposição se sente, o que ele percebe de fato. O público em geral, não apenas o especializado. Atuando como educador, eu tinha essa vontade de fazer com que as pessoas se engajassem, se interessassem pela exposição que estavam vendo, principalmente quando era uma exposição de que eu gostava, como a 24a Bienal de São Paulo, que eu adorava e me esforçava para que as pessoas também sentissem algo do que eu sentia, desse entusiasmo com tanta arte boa.
Acho que esse sentimento contaminou o meu trabalho como artista. Eu queria que as pessoas se engajassem com a obra e até hoje eu tenho essa preocupação, de fazer um trabalho de arte para todo mundo, não só para quem é do meio da arte. Acho que isso não é muito comum entre artistas visuais. Também essa experiência em exposições me trouxe um olhar atento para os acontecimen- tos que uma obra pode proporcionar. Para mim, não basta a obra estar linda na exposição, se ela não despertar nenhum tipo de aconte- cimento, conversas interessantes, interações etc. Acho que esse olhar me levou a pensar trabalhos interativos, de alguma forma.
Para finalizar, gostaria que comentasse um pouco mais sobre o elemento do jogo, especialmente aqueles de armar, que está presente em muitos trabalhos também.
Teve uma experiência que me marcou muito, em 2005, quando eu era coordenador num CEU, programa da prefeitura de São Paulo. Eu era coordenador cultural, e estava acontecendo uma reforma, então tinham muitos blocos de concreto espalhados pelo pátio. Era um pátio enorme, tinha muita criança passando por lá, e eu propus para minha amiga Priscila Okino, que é uma professora de arte incrível, uma parceria: propor às crianças do ateliê dela uma brincadeira com aqueles blocos de concreto. E essa brincadeira deu muito certo, ela se espa- lhou para além do ateliê. Acabaram os ateliês, e as crianças continuaram brincando. E depois acabaram as aulas da escola que funcionava lá, e mais crianças se juntaram à brincadeira. E mesmo no fim de semana a brincadeira não parou. Vi alguns adolescentes, que normal- mente não se envolviam com atividades de arte, muito concentrados, construindo coisas incríveis. E esses blocos estavam lá há mais de uma semana, e ninguém tinha mexido neles. Essa experiência me marcou muito, queria de alguma forma trazer aquilo para o meu trabalho. Em 2006, propus a obra Lugar comum para a Galeria Vermelho. Uma grande caixa de madeira quadrada, suspensa e cheia de areia, para funcionar como um tanque de areia de playground, mas na altura de uma mesa.
Anos depois, tive contato com as teorias do alemão Friederich Fröbel (1782-1852), lendo um livro sobre a pedagogia da Bauhaus. Fröbel desenvolveu a ideia de jardim de infância, um método de educação para crianças em pré-alfabetização. Ele dizia que, antes de alfabetizar as crianças para as letras e palavras, era preciso alfabetizar as crianças para o mundo. Então, ele criou um método baseado em jogos de construir com blocos de madeira, atividades manuais com formas geométricas, dobraduras, bordados, tear etc.
Esses são os primeiros jogos de construir, que revolucionaram a forma de pensar os brinquedos e o ensino do desenho. Antes, os brinquedos eram representações da vida adulta: o cavalinho, a espadinha, a panelinha, a bonequinha etc. Quando você tem um brinquedo que são blocos de madeira com que pode construir qualquer coisa, tem a ideia de que também as crianças podem ser o que elas quiserem. E isso é a revolução do jardim de infância. Não é coincidência que a primeira geração de artistas educada por esse método ou por uma influência indireta desse método é a geração que inventa a arte moderna. E a arte moderna para de olhar para o passado, para modelos preestabelecidos, e passa a querer inventar o futuro. E isso só poderia ter acontecido depois dessa mudança de perspectiva sobre a infância, sobre a educação e sobre o ser humano. Poucos artistas e arquitetos modernos reconheceram essa influência do jardim de infância, mas entre os que reconheceram estão alguns dos mais influentes, como Walter Gropios (1883-1969) e Frank Loyd Wright (1867-1959).
Tem um trabalho meu que eu chamo de Construção infinita (2021) que já teve algumas versões.
É uma instalação interativa com cente- nas de peças de madeira para construir e umas bases de madeira que servem de apoio para essas construções. As bases são compostas de seis partes, remetendo a um corpo humano, membros, corpo e cabeça. Uma forma de trazer essa ideia de que o ser humano é um ser em constante construção e a ideia de que o campo da arte, assim como o campo da educação, é um lugar para se imaginar e construir a si mesmo, individualmente e no coletivo.
› Oficina realizada no CEU Alvarenga, 2005. Foto: acervo pessoal.
› Gui Teixeira,Construção infinita, 2019. Foto: acervo pessoal.
Gui Teixeira
Pesquisa aproximações entre arte e pedagogia, entre o brincar/ jogar e a ação política. Desafia o público em ações corporais colaborativas, envolvendo equilíbrio, risco, experiência, escolhas, construção ou rearranjo com materiais diversos, por vezes objetos, instalações ou em grandes jogos de armar. Acredita no caráter lúdico da arte como poderoso elemento instaurador de comunidades e indivíduos conscientes. Vivendo e atuando em Piracicaba, Gui Teixeira é formado em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado com mestrado em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Como artista destacam-se as participações no Programa Rumos Artes Visuais, no Itaú Cultural, exposição Daquilo Que Me Habita no CCBB de Brasília, Mostra Sesc de Artes, exposição Deslize, no Museu de Arte do Rio.
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